04/02/08

O cego da Boavista

Um velho destroço abandonado
Sobe a sombria rua enoitecida
Em busca dum leito desabitado
Na reles esquina ali ao lado,
Perto da longa e larga avenida.

Derrama a alma sobre o chão
E cobre o corpo com um jornal.
Adormece sem sentir a contrição
Com que se arrasta a civilização
Desde que criou o bem e o mal.

Sonha no silêncio da fantasia
De um lugar que nunca se avista,
E acorda com o brilho da poesia
Da lua que o baptizou um dia
De "o cego da Boavista".

Nem sequer vê a àguia devorada
Por um leão frenético e faminto,
No monumento da rotunda parada.
Mas sente a visão fria e calada
Daquele vencido animal extinto.

A mãe madrugada nasce num jazigo,
Porque a noite gelada e piedosa
Levou o seu amado filho consigo:
A alma livre subiu a um abrigo
E deixou o cadáver na rua irosa.

Do meio da multidão indiferente
Irrompe um rosto sem expressão
Despindo o casaco caro e quente,
E cobrindo o seu professor ausente,
Que acaba de dar a última lição.


Dezembro, 1993 ©